4 de junho de 2011

14.

Um homem leal.

Apaguemos a lanterna de Diógenes: achei um homem! Não é príncipe, nem eclesiástico, nem filósofo, não pintou uma grande tela, não escreveu um belo livro, não descobriu nenhuma lei científica. Não, o homem que achei não é nada disso. É um barbeiro, mas tal barbeiro que sendo barbeiro, não é exatamente barbeiro. Perdoai esta logomaquia; o estilo ressente-se da exaltação da minha alma.

Achei um homem!

Se aquele cínico Diógenes pode ouvir, do lugar onde está, as vozes de cá de cima, deve cobrir-se de vergonha e de tristeza: achei um homem! E importa notar que não andei atrás dele. Estava em casa muito sossegado, com os olhos nos jornais e o pensamento nas estrelas, quando um pequenino anúncio me deu rebate ao pensamento, e este desceu mais rápido que o raio até o papel. Então li isto: “Vende-se uma casa de barbeiro fora da cidade, o ponto é bom e o capital diminuto; o dono vende por não entender.”

Eis aí o homem! Não lhe ponho o nome, por não vir no anúncio, mas a própria falta dele faz crescer a pessoa. O ato sobra. Essa nobre confissão de ignorância é um modelo único de lealdade, de veracidade, de humanidade.

“Não penseis que vendo a loja (parece dizer naquelas poucas palavras do anúncio) por estar rico, para ir passear à Europa ou por qualquer outro motivo que à vista se dirá, como é uso escrever em convites destes. Não, senhor; vendo a minha loja de barbeiro por não entender do ofício. Parecia-me fácil a princípio: sabão, uma navalha, uma cara; cuidei que não era preciso, mais escolha que o uso, e foi a minha ilusão, a minha grande ilusão. Vivi nela barbeando os homens. Pela sua parte, os homens vieram vindo, ajudando o meu erro; entravam mansos e saíam pacíficos. Agora, porém, reconheço que não sou absolutamente barbeiro, e a vista do sangue que derramei faz-me enfim recuar. Basta, Carvalho (este nome é necessário à prosopopéia), basta Carvalho! É tempo de abandonar o que não sabes. Que outros muitos capazes tomem a tua freguesia…” a grandeza deste homem (escusado é dize-lo) está em ser único. Se outros barbeiros vendessem as lojas por falta de vocação, o merecimento seria pouco ou nenhum.

Assim os dentistas. Assim os farmacêuticos. Assim toda a casta de oficiais deste mundo, que preferem ir cavando as caras, as bocas e as covas, a vir dizer chãmente que não entendem do ofício. Este ato seria a retificação da sociedade. Um mau barbeiro pode dar um bom guarda-livros, um excelente piloto, um banqueiro, um magistrado, um químico, um teólogo. Cada homem seria, assim, devolvido ao lugar próprio e determina.

Autor: ASSIS, Machado de.
Leia também: A cartomante.

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