7 de março de 2013

68.

Sobre ruas e calendários I

Fotografias de minha autoria.

Abriu os olhos e viu cores,
mas a realidade era menos colorida que o sonho.

Este primeiro momento do dia ficou marcado com pouca nitidez em sua memória, pois Ameli se encontrava sobre a linha tênue que dividia o sonho da realidade, o dormir do acordar. O ocaso do sonho e o reinado do concreto e real marcava o começo do dia, embora para o mundo ele já houvesse começado com o nascer do sol.

A primeira coisa que avistou ao abrir os olhos foi seu espelho de moldura branca na parede amarela. A imagem do espelho levava direto para o calendário do ano passado em cima da escrivaninha, que possuia uma página final na qual estavam esmagados todos os meses do ano que viria — e que veio e no qual ela estava , o ano dois mil e treze.
O número que representava o ano estava escrito verticalmente no canto da folha, mas ela não o viu, no lugar dele estava a palavra EROS, nome do deus do amor.
Mas, ainda inconsciente sobre estar acordada, notou uma outra coisa escondida no número que virou palavra; pensou que se olhasse esta de forma invertida e desenhasse na imaginação uma letra T após o R de EROS, teria "Sorte".
"Sorte", mas quem diria que tal palavra estaria escondida no ano que possui o número remetido ao azar, seu oposto.
Sorte. Eros. Amor.

Ameli abriu os olhos e viu cores,
as mais coloridas cores que já havia visto na realidade.
Abriu os olhos depois do último piscar, como em um impulso, uma epifania, uma explosão.

Levantou da cama às oito e quarenta e sete, logo após sua epifania. Neste dia as costumeiras mãos soníferas não saíram da cama a fim de puxá-la pelos ombros para mais minutos de sono, não havia preguiça, acordara com um sorriso colado no rosto. Escovou os dentes se olhando no espelho com uma feição ansiosa e levada como se dissesse para seu reflexo: "está para acontecer!"; tomou um rápido banho e vestiu seu vestido favorito sem se importar com dia ou ocasião. Na verdade, não havia porquê se importar, era a ocasião perfeita, embora não fosse oficial e sabida por todos, mas ela sabia, o calendário lhe disse entre o sonho e o "bom dia". Ele disse, ela ouviu.

Tomou seu caminho pela rua L'amar, passou pela quitanda do seu Ricardo e deu-lhe um "bom dia" florido, ele sentiu, e viria a encher-se do amor de Ameli por todo o dia. Continuou seu caminho e por ele encontrou um cão de rua com pelos sujos e bagunçados que começou a segui-la. Ela comprou um balão na praça, dividiu um sorvete com o cachorro e se despediu dele. Deitou na grama do parque, correu por ele de braços abertos como um avião, soltou o balão e ficou olhando ele ir embora. Jogou pedras no rio, acompanhou uma velhinha chamada Sofia na sua missão diária de alimentar os pombos, e elas conversaram por alguns minutos sobre como seria adorável voar. Olhou as nuvens, encontrou um desenho em quase cada uma delas.

O céu ficou escuro no meio da tarde e a chuva esperada caiu, Ameli passou longos minutos sem fugir dessa chuva como todos os outros fizeram com seus guarda chuvas, passos largos e jornais sobre a cabeça.

Quando a chuva brevemente passou o céu ficou limpo para mostrar as estrelas que a noite trazia. Ao escurecer, na praça, Ameli conheceu um garoto que lhe mostrou que não só as nuvens formam desenhos, mas também as estrelas. E eles encontraram desde botas à dragões escondidos em linhas pontilhadas invisíveis no céu. Assim ele encontrou também uma flor e disse a Ameli que dela seria. A sua flor, que nunca morreria.
Comeu pipoca com o garoto e despediu-se dele.
***
Ameli estava voltando para casa, tão brilhante como nunca pensou ser possível em seu mundo. Levou sua flor com sigo e volta e meia olhava o céu para certifica-se de que não a havia perdido.
Haviam duas ruas que levavam-na a sua casa. Se perguntava, ao caminhar, qual delas seria mais adequada seguir naquela noite.

Ela ainda não sabia, mas em uma das ruas estava um homem que tiraria dela a vida, na outra havia uma borboleta que a assustaria ao mover-se em seu voo despretensioso.

Eu tentei, eu até que tentei descobrir em qual curva ela se escreveu,
mas perdi a garota e até hoje não sei se naquela noite seu coração desvaneceu-se na Rua Treze ou disparou na L'amar.

Temo pela minha pequena Ameli,
pois ouvi sair da boca do calendário obsoleto que quem tem Sorte no Amor tem azar no jogo.

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