19 de outubro de 2013

77.


você está inundada, menina
você se engole pra não se vomitar
você chama isso de controle

você perdeu o controle, menina
por algum lugar há de sair
toda essa merda que você não quer mostrar
porque não é bonita

você está confusa, menina
quando você engole pedaços de si mesma
leva junto palavras que caracterizam
o que você não quer admitir que há aí dentro
e quando um pouco disso escapa
você não sabe nomear

tem mais parte tua escondida no baú
que sendo usada
você tá toda guardada
tentando sair

e esse barulho é pra não te deixar esquecer
é tua fraqueza querendo escapar
teu monstro
preso na barriga
grunhindo

abra o baú, menina
ele só quer um abraço

76.

NA SAÍDA

Márcia era recepcionista de uma clínica de psicoterapia. Um dos pequenos prazeres de sua vida era olhar a expressão das pessoas depois de saírem da consulta. Havia essa garota, em específico, que esquecia-se que havia chorado durante boa parte da terapia e quando saia sempre se despedia das pessoas com um sorriso no rosto, porém com os olhos inchados e vermelhos. Márcia se sentia importante ao imaginar que era uma das poucas pessoas que presenciavam aquele raro momento em que o que a menina sentia e o que ela queria aparentar sentir coexistiam estampados em seu rosto, sem que ela nem percebesse. Costumava imaginar, e supor, que a menina sentia tanto que mal conseguia fazer tudo caber ali dentro sem derramar a
                                                     
                                                          tris
                                                                    te
                                                                            za
    
na 
saída.

75.

MINHA VOLTA

Volta e meia descubro que o tempo passa,
que o passado e o futuro deixam de existir
quando passam a existir

Volta e meia sinto como se o presente
fosse o passado, pro qual eu tentei e consegui voltar
de tanta saudade
mas a saudade não veio junto
e eu desperdiço o tempo mais uma vez

Volta e meia descubro que a gente tenta enfeitar
embelezar o que é natural e simples
maquiar a vida
dando sentidos que não colam direito
como adesivo velho
E no fundo
a vida não aceita adesivo algum
nem sentido algum

A vida é uma superfície
estendida no meio do nada
ou do tudo
com um punhado de seres
andando
tentando significar seu andar
e falhando

Volta e meia eu vou embora
e em meia volta eu volto
e escrevo um mundo