23 de junho de 2011

27.

Sem deixar rastros.

Toda noite eu esperava ansiosa pra te encontrar em sonho, me arrumava para que você parasse na região onde eles nasciam e viesse alegrar a minha noite e madrugada, o curto-longo espaço de tempo anterior aos problemas, à realidade, à vida, à manhã que fazia todos se levantarem e encararem seus medos  ou não. Mas assim era; nos encontrávamos toda noite e isso me bastava, vivíamos uma história adorável, até que um dia, eu, arrumada e ansiosa  fechei os olhos pra te ver e você não apareceu, voltei a sonhar com aquelas coisas estúpidas e sem sentido que a minha mente criava quando você não vinha. Você era o melhor de mim e o resto que antes me bastava já não era suficiente. O pior é que eu não podia te obrigar a voltar, eu não podia fazer nada, não há controle sobre o que não é real, um dia tudo simplesmente vai embora, evapora, sem deixar rastros. Não construa seu castelo com tijolos imaginários, um dia você pode se ver sem nada do que criou.

18 de junho de 2011

26.

A garrafa com um sonho dentro.

Na beirada do rio ela estava, era uma manhã ensolarada e tudo tinha ficado meio amarelado, se sentou e colocou sobre as pernas um pequeno caderno, com cuidado passou seus cabelos para o lado esquerdo e suspendeu suas pernas para fazer de apoio. Ao seu lado estava uma garrava transparente e pequena com uma rolha que a tampava. Pegou o lápis e depois de alguns segundos olhando fixamente pro grande rio azul, explorando cada parte que podia ser vista, já sabia o que escrever. E assim pôs no papel com linhas azuis:

Te espero. E mesmo que me canse, mesmo que eu queira acabar com a esperança que carrego. Te espero, te espero, mesmo sem querer.

E você deve estar se perguntando: Te espero? Espera quem? Ela esperava muitas coisas: um amor, amigos verdadeiros, felicidade, sonhos realizados, sorrisos, aquela carta era para muitos, porém nenhum destinatário a receberia. A garota enrolou o papel com cuidado, o colocou dentro da garrafa e tampou-a novamente com a rolha; ergueu o objeto até a atura do rosto e olhou a carta lá dentro sorriu não sabia aonde ela chegaria, mas sabia que, certamente, iria à algum lugar. E jogou a garrafa no rio, deixou-a a mercê dos ventos. E, sem ter saído do lugar, ficou olhando ela ir pra longe.

Abraçou as pernas dobradas e olhou fixamente pro grande rio azul, explorando cada parte que podia ser vista, já sabia onde ir, iria de volta para vida, para casa, para o seu mundo real e não-belo. E lá estava ela, a mercê dos ventos, como a garrafa jogada no rio, lá estava ela, sem saber aonde chegaria, mas sabendo que, certamente, iria à algum lugar.

25.

Aqueles dois.
Pelas tardes poeirentas daquele resto de janeiro, quando o sol parecia a gema de um enorme ovo frito no azul sem nuvens no céu, ninguém mais conseguiu trabalhar em paz na repartição. Quase todos ali dentro tinham a nítida sensação de que seriam infelizes para sempre. E foram.
Caio Abreu.

24.

Consigo mesma.

Se abraçava bem, bem forte. Talvez não tivesse mais ninguém no mundo que nunca desistiria dela daquele modo. Estava sempre ali, sempre, ela consigo mesma. Acalmava-se, desesperava-se, mas sempre dizia: as coisas não são tão ruins assim. E até hoje ninguém sabe se realmente eram ou não, o que se sabe é que as palavras dela pra ela mesma a confortaram. Odiava confessar, mas adorava aquelas mentiras bonitas, aquelas as quais ela não sabia que eram mentiras, afinal, você concorda comigo que tudo é verdade quando acreditamos? Pois então, se ela não se alimentasse daquela ilusão, de que viveria? Morreria de fome, fome de momentos que ela só vivia na imaginação e que adoraria ter na realidade, mas que como não tinha, sonhava, sempre e sempre.

22.

Cartas para Julieta.

"E" e "Se" são duas palavras tão inofensivas quanto qualquer palavra, mas coloque-as juntas lado a lado, e elas tem o poder de assombra-lá pelo resto da sua vida. "E se..." Não sei como sua história acabou, mas sei que se o que você sentia na época era amor verdadeiro então nunca é tarde demais. Se era verdadeiro então, porque não o seria agora? Você só precisa ter coragem para seguir seu coração. Não sei como é sentir amor como o de Julieta, um amor pelo qual abandonar entes queridos, um amor pelo qual cruzar oceanos. Mas gosto de pensar que, se um dia sentisse, eu teria coragem de agarrá-lo. E Claire se você não o fez, espero que um dia faça.
Julieta.

10 de junho de 2011

21.


Quando Ana me deixou, eu fiquei muito tempo parado na sala do apartamento, cerca de oito horas da noite, com o bilhete dela nas mãos. No horário de verão, pela janela aberta da sala, à luz das oito horas da noite podiam-se ainda ver uns restos dourados e vermelho deixados pelo sol atrás dos edifícios, nos lados de Pinheiros. Eu fiquei muito tempo parado no meio da sala do apartamento, o último bilhete de Ana nas mãos, olhando pela janela os dourados e o vermelho do céu. E lembro que pensei agora o telefone vai tocar, e o telefone não tocou, e depois de algum tempo em que o telefone não tocou, e podia ser Lucinha da agência ou Paulo do cineclube ou Nelson de Paris ou minha mãe do Sul, convidando para jantar, para cheirar pó, para ver Nastassia Kinski nua, perguntando que tempo fazia ou qualquer coisa assim, então pensei agora a campainha vai tocar. Podia ser o porteiro entregando alguma dessas criancinhas meio monstros de edifício, que adoram apertar as campainhas alheias, depois sair correndo. Ou simples engano, podia ser. Mas a campainha também não tocou, e eu continuei por muito tempo sem salvação parado ali no centro da sala que começava a ficar azulada pela noite, feito o interior de um aquário, o bilhete de Ana nas mãos, sem fazer absolutamente nada além de respirar.

Caio Abreu.

20.


Várias e várias borboletas empalhadas, era o que ela via naquela sala. Sentia uma mistura de fascinação e tristeza, pois haviam ali espécies as quais ela nunca imaginou que existiam, tão raras, tão belas, e pra quê? Não entendia. Pra que tanta beleza presa atrás de um vidro? Elas, tão lindas, nunca poderão voar outra vez, não poderão embelezar os jardins, os campos e nem polinizar as flores. Então me diga, pra quê? Pra que serve a beleza morta em um pote de vidro?

19.


Eu abri os olhos e tudo era colorido. Não sei porquê, mas o cenário me lembrava uma outra época, aquela dos filmes antigos, com castelos e vestidos grandes, e por falar em vestidos grandes, era o que eu vestia, um formidável e simples, sem anáguas; meu cabelo estava solto, mas com uma trança pequena de cada lado, que ao longo de si mesmas se encontravam e viravam uma só.

Eu olhava fascinada, o castelo era enorme visto de fora, e aparentemente antigo, com janelas, chaminé e paredes de pedra, mas algo chamou a minha atenção: um pequeno caminho feito de pétalas rosas com extremidades brancas, o segui. Havia um portão ao lado direito, o qual empurrei emitindo um som típico do mesmo. Naquela parte havia um jardim lindo e imenso, era difícil não se perder, haviam flores dos mais variados tipos e cores, pássaros, árvores altas e borboletas. O vento batia, mas não estava frio, nem quente, um meio termo, eu acho. Ouvia o som dos pássaros e fechava os olhos pra ver tudo aquilo melhor, era encantador. Sorri e corri por entre as flores, as árvores, tudo, sorria e me perdia, até não saber mais de onde vim e nem pra onde ia, mas não estava preocupada em voltar, eu só queria ir e conhecer o que estava por vir, o mais depressa possível, antes que o sonho acabasse.

9 de junho de 2011

18.

O espelho despedaçado.

Ele deixou cair no cinzeiro o cigarro que se apagara.
Uma vez, quando era menor ainda do que você, brincava com um espelhinho à beira de um poço da minha casa, eu morava numa fazenda meio selvagem. O poço estava seco e era bonito o reflexo do espelhinho correndo como se fosse uma lanterna pela parede escura, sabe como é, não?
Mas de repente o espelho caiu e se espatifou lá no fundo.
Fiquei desesperado, tinha vontade de me atirar lá dentro pra buscar os cacos do meu espelho. Então alguém acho que foi meu pai levou-me pela mão e me consolou dizendo que não adiantava mais nada porque mesmo que eu juntasse, um por um, os cacos todos, nunca mais o espelho seria como antes. Sabe, Virgínia, vejo Laura como aquele espelho despedaçado: a gente pode ir lá no fundo e colar os cacos, mas tudo então o que ele vier a refletir, o céu, as árvores, as pessoas, tudo, tudo estará como ele próprio, partido em mil pedaços.
Veja bem, triste não é o que possa vir a acontecer... a morte, por exemplo. Triste é o que está acontecendo neste instante. Ela tem a cabeça doente, o coração doente... E não há remédio. Só o sopro lá dentro é que continua perfeito como o espelho, antes de cair no chão.

Lygia Fagundes Telles.

8 de junho de 2011

17.

O açúcar.

O branco açúcar que adoçará meu café
nesta manhã de Ipanema
não foi produzido por mim
nem surgiu dentro do açucareiro por milagre.

Vejo-o puro
e afável ao paladar
como beijo de moça, água
na pele, flor
que se dissolve na boca. Mas este açúcar
não foi feito por mim.

Este açúcar veio
da mercearia da esquina e tampouco o fez o Oliveira,
dono da mercearia.
Este açúcar veio
de uma usina de açúcar em Pernambuco
ou no Estado do Rio
e tampouco o fez o dono da usina.

Este açúcar era cana
e veio dos canaviais extensos
que não nascem por acaso
no regaço do vale.

Em lugares distantes, onde não há hospital
nem escola,
homens que não sabem ler e morrem
aos vinte e sete anos
plantaram e colheram a cana
que viraria açúcar.

Em usinas escuras,
homens de vida amarga
e dura
produziram este açúcar
branco e puro
com que adoço meu café esta manhã em Ipanema.

Ferreira Gullar.

7 de junho de 2011

16.

Luzes apagadas.

Não havia ninguém em casa, então ela resolveu começar um daqueles seus momentos que julgava serem belos. Diante do silêncio da casa inerte desligava todas as luzes, colocava a sua atual música preferida e ligava a lanterna, não sei porquê, mas adorava fazer isso, ficava iluminando pequenas partes do quarto, olhando cada detalhe. Se jogava na cama e iluminava o papel colado no teto que dizia: Tudo vai passar. Tudo vai ficar bem. Ela havia escrito no intuito de se animar nas horas difíceis. Mas acho que o que ela gostava mesmo nisso tudo era apagar todo o resto e se concentrar em uma só coisa, olhar os detalhes, não ter que pensar demais com tantas informações, só queria que tudo fosse mesmo que por um breve momento simples e não tão cheio. Depois levantava, aproveitava o refrão, ia cantando e girando pelo quarto com sua luz na mão, iluminando rápido as coisas na parede, os retratos tirados na infância, os ursos, as coisas jogadas pela cama, a cor da parede já antiga, e por fim tinha visto todo o seu quarto, que abrigara tanto de si. E então parava, desligava a lanterna, ligava as luzes, abaixava o som e se ligava pro mundo outra vez, embora preferisse as luzes apagadas.

6 de junho de 2011

15.

O caminho e o destino.

Sentou-se em um banco estreito, ao lado do velho homem que sempre aparecia pelas bordas da vida vazia. Com seu charuto na boca, tinha cor morena, cabelos grisalhos e voz serena. Aparentava ser sábio, e as rugas na face denunciavam sua longa experiência.

Céus, como estou cansada.
Cansada de que, querida?
De andar tanto e não encontrar coisa alguma, senhor.
Bem sei, bem sei. Disse afirmando com a cabeça. Com seu charuto por entre os dedos, pintava no rosto um sorriso quase invisível.
Estou com fome.
Fome de que, querida?
De sonhos realizados, eu acho.
Bem sei, bem sei. Disse o velho tirando o charuto da boca, deixando a fumaça sair. E continuou:
A fome morre no corpo. Os sonhos morrem na alma.
A fome morre no corpo. Os sonhos morrem na alma. Ela repetiu.
Sabe, senhor, o pior é não saber quando essa jornada cansativa vai acabar.
Talvez você não deva nem queira saber, minha jovem.
Pois quero, e até me atrevo a dizer que devo!
O velho sorriu.
E se a vida for menos do que você pensa? E se os teus sonhos forem como névoa prestes a se dissipar?
Não suportarei, eu suponho.
Pois então, se alimente dos sonhos enquanto eles podem matar a tua sede, enquanto você ainda tem fé o bastante pra criar um destino que ainda nem veio.
Ela suspirou e disse:
Devo continuar, senhor?
Sempre, querida. Sempre.

4 de junho de 2011

14.

Um homem leal.

Apaguemos a lanterna de Diógenes: achei um homem! Não é príncipe, nem eclesiástico, nem filósofo, não pintou uma grande tela, não escreveu um belo livro, não descobriu nenhuma lei científica. Não, o homem que achei não é nada disso. É um barbeiro, mas tal barbeiro que sendo barbeiro, não é exatamente barbeiro. Perdoai esta logomaquia; o estilo ressente-se da exaltação da minha alma.

Achei um homem!

Se aquele cínico Diógenes pode ouvir, do lugar onde está, as vozes de cá de cima, deve cobrir-se de vergonha e de tristeza: achei um homem! E importa notar que não andei atrás dele. Estava em casa muito sossegado, com os olhos nos jornais e o pensamento nas estrelas, quando um pequenino anúncio me deu rebate ao pensamento, e este desceu mais rápido que o raio até o papel. Então li isto: “Vende-se uma casa de barbeiro fora da cidade, o ponto é bom e o capital diminuto; o dono vende por não entender.”

Eis aí o homem! Não lhe ponho o nome, por não vir no anúncio, mas a própria falta dele faz crescer a pessoa. O ato sobra. Essa nobre confissão de ignorância é um modelo único de lealdade, de veracidade, de humanidade.

“Não penseis que vendo a loja (parece dizer naquelas poucas palavras do anúncio) por estar rico, para ir passear à Europa ou por qualquer outro motivo que à vista se dirá, como é uso escrever em convites destes. Não, senhor; vendo a minha loja de barbeiro por não entender do ofício. Parecia-me fácil a princípio: sabão, uma navalha, uma cara; cuidei que não era preciso, mais escolha que o uso, e foi a minha ilusão, a minha grande ilusão. Vivi nela barbeando os homens. Pela sua parte, os homens vieram vindo, ajudando o meu erro; entravam mansos e saíam pacíficos. Agora, porém, reconheço que não sou absolutamente barbeiro, e a vista do sangue que derramei faz-me enfim recuar. Basta, Carvalho (este nome é necessário à prosopopéia), basta Carvalho! É tempo de abandonar o que não sabes. Que outros muitos capazes tomem a tua freguesia…” a grandeza deste homem (escusado é dize-lo) está em ser único. Se outros barbeiros vendessem as lojas por falta de vocação, o merecimento seria pouco ou nenhum.

Assim os dentistas. Assim os farmacêuticos. Assim toda a casta de oficiais deste mundo, que preferem ir cavando as caras, as bocas e as covas, a vir dizer chãmente que não entendem do ofício. Este ato seria a retificação da sociedade. Um mau barbeiro pode dar um bom guarda-livros, um excelente piloto, um banqueiro, um magistrado, um químico, um teólogo. Cada homem seria, assim, devolvido ao lugar próprio e determina.

Autor: ASSIS, Machado de.
Leia também: A cartomante.

13.


Ela corria feliz pela grama, podia ver os morros que aparentavam estar pertos, mas estavam longe. Seus cabelos balançavam no mesmo ritmo da sua felicidade. Corria para o seu destino, sim, corria como nunca, e talvez o que estava a sua espera nem fosse tão bom, mas a felicidade estava em correr, correr sem olhar pra trás, porque de tanto andar desanimada e sozinha por caminhos tristes, ela finalmente encontrara o verde, o belo, o simples que ela tanto queria, e corria sem pensar odiava pensar demais, nunca tivera bons resultados corria de olhos fechados e seu sorriso quase que não cabia no rosto. Não pensava em desapontamentos, nem em decepções, sentia o vento gélido tocar-lhe a face. No fundo, o único medo era de que o tempo acabasse com a beleza de um sonho realizado.