29 de dezembro de 2014

86.

Àrvores de Natal


Gilda descobriu-se viva. Aquela que muito incomodava, tinha poucos amigos e era pouco querida. Assim também o era Ana (seu milagre de natal), que quase nenhum incomodo causava e cuja existência poucas vezes era sentida. Tinha os braços finos, as pernas finas e sonhos e desejos grossos como grandes e velhas árvores, mas isso não era visível. Só quem se aproximava e ouvia o barulho das folhas ficava sabendo, lhe oferecia um abraço e sentava embaixo, na sombra  e dormia um pouco, e sonhava (acho até que era um pé de manga espada). Árvore visível era Gilda, seu cabelo de copa, de folhas de sabedoria, de grandeza; sua aparente força indestrutível e armadura, dura, escondia que ela dava frutos doces, os mais doces e vermelhos, mas frágeis ao cair no chão, desmanchando-se ao mínimo toque que não fosse de flor ou de passarinho.

Em uma dessas ocasiões de poucos frutos nos galhos e muitos desmanchados no chão, Ana questionou-lhe à vida (como último sopro, grito de socorro de árvore que também morria), chamou-lhe de volta para sua existência frondosa  há muito esquecera de si e imersa em feridas: murchava.

Dividiram a seiva do Natal e as dores do ano, colaram uns galhos perdidos, cortaram outros podres. Por fim, viraram pinheiro, usaram os enfeites velhos e empoeirados e a estrela, meio tímida, brilhou. 
Não esperaram o Papai Noel, que Papai Noel não existe. 
Àrvores de Natal, sim.
E brilham.

23 de dezembro de 2014

85.


o corpo que não cai


dentro do corpo
um coração

cheio de dores completas
de belezas perdidas
e fantasmas secos
sem plasma
sem lençol
e sem correntes


um verme

rastejando pelas paredes
um verme besta
burro
corrói as certezas
as incertezas
e vai empurrando a vida
deixando ir
sem nem saber pra onde


uma borboleta

inquieta e perdida
voando presa
dentro do corpo:

e se as asas caem
e se vier casulo
e depois lagarta?
e se erro tudo
e o tempo passa
e vejo o fim
antes do começo?


uma flor

se abre e vai mostrando
que o solo é fértil
basta plantar
que ainda há mesmo muita vida



a borboleta pousa
e sonha